'' Ahhh...
Não acredito que isso aconteceu de novo. Alexantyr e suas histórias de pescador completamente esdrúxulas. O homem deve ter é cheirado muito sal em alto mar, isso sim. Diz até que foi atacado por demônios d'água... e fica por aí, de taverna em taverna, espalhando entre os outros pescadores e viajantes marítimos - além de sempre mostrar a cicatriz feita por um dos demônios e uma série de outras marcas no casco de seu barco.
Não quero criticá-lo tanto pois é um homem correto,e sofreu muito na vida (embora isso tenha mexido com sua mente). Desde que Yla o deixou sozinho para cuidar dos filhos e carregar o luto,a vida do homem acabou em uma estrada de dois caminhos.Ou os peixes que trariam moedas de prata e comida,ou a presença e o cuidado paterno. Sorte que eu pude ajudar com as crianças,coisa que já estou acostumada a fazer,pois é o meu trabalho - mas no fundo, não podia desamparar os meus sobrinhos.
Yla e eu eramos grandes amigas. Já me desapeguei do fardo de sua falta.
Sua morte foi calma e limpa. Morreu dormindo na mesma casa que seus lindos filhos,e teve sua alma purificada por isso. Tenho certeza.
Alexantyr teve uma crise de preocupações... sobre como cuidaria de uma cabana numa parte perigosa da costa ? Como conseguiria deixar seus filhos sozinhos por dias e noites, para conseguir pescar ? Eu lhe disse que ajudaria até ele conseguir um outro lugar para morar...ou então outra esposa. Também disse que não cobraria nada pelo cuidado materno mesmo sendo o meu trabalho, pois entendo a situação dele,e faço isso pelas crianças e por Yla - não por prata.
Ele continua um homem de ações justas e foi honrado pela esposa por causa disso. Yla me contava quando íamos às grutas,que ela se orgulhava de ter se casado com alguém como ele.
Mas isso está mudando,pelo que tudo indica... Ele está ficando cada vez mais ignorante. Ignorando a própria realidade e cego por mitos e miragens.
Desde que ele diz ter visto pessoas - seres,na verdade - boiando em alto mar,e depois mergulhando para as profundezas,ele nunca mais foi verdadeiramente o mesmo. Algo mudou nele. Parece meio paranoico com o mar.
As viagens que faz,estão sempre carregadas com redes maiores,arpões mais afiados,e bastante cerveja hahahah.
Eu não acredito que ele tenha visto o que diz que viu. Eu até acho engraçado algumas das histórias de pescadores por aqui,mesmo as que são trágicas como a do velho Ildry, em que uma cobra maior que seu barco,cheia de escamas pontudas e duras como ferro,fez um rombo no casco de seu barco e arrancou-lhe a mão direita. O engraçado é que agora sem uma das mãos,ou ele veleja,ou segura um copo de cerveja (ele é famoso por ter feito os dois ao mesmo tempo,e ter encontrado por acidente uma ilha belíssima ao sudeste de nossa costa).
Depois de relatos mais frequentes sobre avistamentos de seres - demônios,nesta ocasião - mais e mais histórias estão surgindo,e junto delas,provas que se dizem reais.
Alexantyr voltou com marcas de unhas na parte de baixo do casco.
Um tempo depois,haviam dentes.
Furos.
E por fim,uma cicatriz em seu rosto.
Não consigo acreditar que existem tais criaturas. Isso não entra na minha cabeça!
Outra coisa que não consigo acreditar,é que se isso for invenção,como pode um homem cortar o próprio rosto com o intuito de convencer ? E nem se fala no caso de Ildry que poderia ter arrancado a própria mão - mas isso até seria provável para um bêbado maluco que nem ele.
Mas confesso que a engenhosidade e criatividade se superam... deve ter sido difícil fazer as marcas agressivas na parte de baixo dos cascos. Eu até perguntei para Alexantyr sobre isso,se é mesmo tudo verdade...
Ele me disse que sim,tudo era verdade.
Foi bastante convincente sua expressão,mas eu quase acreditei.
Além de me dizer (novamente) o que havia dito aos seus amigos pescadores - sobre o casco e a cicatriz - ele me disse algo que não contou para ninguém. Ele diz ter encarado um desses demônios por bastante tempo,e conseguiu observar melhor a fisionomia deles:
_A noite estava limpa,sem nuvens nem nada...nem mesmo a lua brilhava o suficiente...não conseguia ver nada além da vela que estava acesa perto de mim.Peguei no sono por um momento,e acordei com barulhos no piso do barco. Houve algumas sacudidas também,mas não pareciam ondas. Levantei do banquinho para checar se eram peixes,mas eu dei três passos rumo ao meu arpão e fiquei paralisado.
Foi nesse momento que veio a expressão extremamente convincente. Era uma mistura de medo com apreensão:
_ ... Eu me dei conta de que os arpões estavam fora do lugar,e um deles estava faltando. Eu deixei 4 arpões presos em cordas apoiados na lateral de dentro do barco,e um deles sumiu junto com a corda. A corda foi arrancada do lugar que eu prendi! Nenhum peixe tem essa força! Eram cordas grossas, Syzzir! E como um peixe alcançaria os arpões ?!
Depois de uma leve gritaria - quase que implorando para que eu acreditasse nele - ele se acalmou e continuou me contando o seu segredo:
_ Bem... depois que notei a diferença entra as lanças, fiquei olhando ao meu redor. Tudo estava preto. Levemente azul aqui e alí...algumas ondinhas alaranjadas por causa da luz de meu barco... até que vejo uma breve luz, aparecendo e desaparecendo em baixo d'água. Era um pequeno clarão branco,que provocou uma sombra distorcida na superfície,o que me deixou tremendo de medo e me fez pegar um dos arpões. Agora eu estava suando,tremendo,sonolento,e com uma lança nas mãos esperando algo para acontecer.
Ele deu uma breve pausa depois disso,e eu quis incentivar ele a desabafar... estava levando isso mais como um desabafo de uma pessoa que ficou doente por ter bebido água do mar. Então,disse para ele continuar movimentando a mão em círculos:
_ Realmente algo aconteceu, Syzzir. Um busto subiu da água. Tinha olhos brancos. Foi tudo o que vi em meu primeiro encontro com pouca luz. Logo que o busto desceu para o fundo,corri para a vela que estava grudada no chão e rapidamente me apoiei para fora do barco. Fiquei tentando observar o que era aquilo...fiquei tentando ver em baixo d'água,mas não vi nada. Depois disso eu fiquei ainda mais alerta,sempre com a vela na mão para iluminar melhor...e ainda bem que fiz isso.
Estávamos na porta de casa conversando sobre isso pois ele não queria que as crianças pequenas soubessem e ficassem com medo. Ouvi a filha menor, Dryska,abrindo a porta e dizendo que seu irmão Dhruyka dormiu na mesa da cozinha. Disse para não acordá-lo,e também disse que já estaria entrando depois que acabar de conversar com seu pai - e em seguida,ele continuou:
_ Não soube se era o mesmo busto,mas novamente,um busto subiu das águas novamente. Dessa vez eu pude ver um pouco melhor a face da criatura. Havia fissuras que iam do canto da boca até a metade do maxilar. Tirando isso e os olhos brancos, o rosto era parecido com o de nós. Depois de encarar o ser, a água se agitou ao seu lado,e mais um apareceu. Esse parecia mulher - traços mais finos,e cabelos mais compridos...e os cabelos pareciam secos. Ela também tinha uma faixa escura descendo da boca ao queixo...e novamente observei a mesma luz que vinha do fundo,ainda mais forte abaixo dessa segunda criatura. Ela tinha um olhar hipnotizante...eu não conseguia desviar meu olhar...e de súbito,meu medo,suor e tremedeira sumiram. Um vento forte apareceu do nada e apagou minha vela,junto da magia que havia no olhar daquele ser. Agora eu voltei para o estado em que estava - tremendo,suando e com medo - e pude observar ainda melhor a primeira criatura que apareceu. A luz branca do fundo estava oscilando,e pude ver com mais detalhes o seu rosto forte e ossudo. Poucos cabelos e olhos menores. Muitas cicatrizes... E o reflexo da lâmina do meu arpão roubado. Foi então que vi um vulto preto vindo em minha direção - era a o arpão que o maldito lançou contra meu rosto,pegando na bochecha e...
Interrompi ele pois ouvi Dryska chegando perto da porta para me dizer outra coisa. Disse que seu irmão havia acordado,e eu respondi que já estava quase acabando de conversar com seu pai.
Quando ela fechou a porta,o relato prosseguiu:
_ Caí no chão do barco. Estava um pouco tonto e com o coração acelerado. Levantei, apoiando na borda,e quando observei as águas,estavam apagadas novamente - e havia apenas uma silhueta mais densa que a água. Era a criatura que me atacou, Syzzyr! E ele FALOU comigo! ELE DISSE QUE..
_ Ah... desculpe. Desculpe também por fazer você perder seu tempo me ouvindo. Sei que você não acredita nas histórias, mas pensei que algo que aconteceu comigo iria mudar sua opinião.
O pescador entrou na casa,com a cara cansada,e foi tirar as botas para ir se banhar. Eu também entrei,e fui preparar a janta para nós,com uma pontinha de dúvida em minha mente.
Será que isso realmente existe ? Um novo ''tipo'' de humano ? E se existe - e também,se eu pensar bem - devido ao suposto habitat deles,eles também se alimentam de peixes...e talvez, as pescas fartas deste mês estariam prejudicando a sobrevivência deles.
O maldito conseguiu... me sinto menos cética do que antes,mas mesmo assim continuo como uma ostra.
Ugh... não consigo pensar direito. Minha cabeça dói e tenho que ir dormir logo. O dia vai ser longo amanhã. Fazem 2 dias que o pescador anterior não volta,e seus parentes e amigos estão organizando um grupo de barcos para procurá-lo. Segundo o murmurinho dos vizinhos,o homem saiu para pescar caranguejos e peixes,bem no local onde sempre pescamos,e onde as aparições dos demônios são frequentes quando anoitece.
O grupo de ajuda será formado por 3 barcos. Um da família dele,o outro do velho bêbado (cujo objetivo secundário seria recuperar sua mão,quem sabe).
E o terceiro é de Alexantyr e seus amigos.'' - Diário de Syzzyr. Página cinco.
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